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Epopeia da Legalidade - 50 anos: “A população da capital gaúcha vivia momentos de angústia e dificuldades”

Por Adaucto Vasconcellos *
Início de tarde de uma sexta-feira. Fazia frio em Porto Alegre. Na redação de Ultima Hora o assunto predominante era o pronunciamento do governador Carlos Lacerda, da Guanabara, que na noite anterior acusara o presidente Jânio Quadros de tramar um golpe contras as instituições.
De repente, a notícia-bomba: Jânio renunciara à Presidência logo após as solenidades do Dia do Soldado. As rádios repetiam a todo instante os termos da carta-renúncia:
“Ao Congresso Nacional. Nesta data, e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça as razões de meu ato, renuncio ao mandato de Presidente da República”.
Corri à Prefeitura disposto a entrevistar o prefeito Loureiro da Silva. Minhas relações com Loureiro, tensas desde muito tempo, haviam se deteriorado ainda mais nos últimos dias. O Prefeito votara em Jânio e nutria um profundo desapreço ao governador do Estado, Leonel Brizola.
O gabinete de Loureiro estava repleto de assessores e uns poucos jornalistas disputavam espaço para ouvi-lo sobre a renúncia do Presidente. Ao ver-me, Loureiro indagou se o Congresso tomara conhecimento da renúncia. Respondi-lhe afirmativamente e acrescentei que o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, seria empossado nas próximas horas. Loureiro da Silva vaticinou:
– É o caos.
O presidente Jânio Quadros vinha enfrentando problemas desde que. anunciara o propósito de reatar relações diplomáticas com a União Soviética, passando pela condecoração de “Che” Guevara e de sua manifestação de apoio ao ingresso da China Comunista na ONU.
Enquanto o Presidente, entre goles generosos de cerveja, assistia a intermináveis sessões de bang-bang na sala de projeções do Palácio da Alvorada, a grande imprensa se indagava dos rumos que se imprimia à política externa brasileira. David Nasser escrevia em O Cruzeiro (500 mil exemplares semanais):
– Todos os governos do Brasil fizeram a marcha para o Oeste. Jânio está fazendo a marcha para o Leste. Se esse homem muda a sua maneira de pensar, o povo tem o direito de mudá-lo.
Carlos Lacerda, por sua vez, denunciava “uma tendência esquerdista” do Governo e acusava Jânio de “estar tramando a supressão do regime democrático”.
Teóphilo de Andrade, dos Diários Associados, escrevia que “Jânio chocou a opinião pública ao colocar a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul no peito de “Che” Guevara, agente apátrida do Kremlin”.

O veto militar

O vice-presidente João Goulart estava no exterior em missão oficial. A expectativa dominante no dia 26 de agosto, em Porto Alegre era de como se posicionariam certos setores das Forças Armadas diante de sua investidura na Presidência da República. A resposta foi dada pelo ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, ao deputado Ruy Ramos, do PTB do Rio Grande do Sul:
– As Forças Armadas não permitirão a posse do Vice-Presidente e,mais que isso, determinarão a sua prisão tão logo desembarque em território nacional.
Brizola requisitava as estações de rádio da cidade e dava início à reação do Rio Grande. Dizia na madrugada do dia 27 que “não permitirei, por nenhuma forma, que a honra do Rio Grande e a Constituição da República sejam ultrajadas”. Anunciava a sua intenção de resistir à bala, se preciso, para assegurar a posse de Goulart.
Última Hora se antecipava aos demais jornais e denunciava em edição extra: “Golpe contra Jango”. O editorial de primeira página resumia os propósitos do Governo e do povo do Rio Grande: “Constituição ou guerra civil” .
Barricadas protegiam o Palácio Piratini. No terraço eram instaladas metralhadoras pesadas e, em seu interior, distribuídas armas requisitadas pelo Governador às fábricas Taurus e Rossi. Os sindicatos e os estudantes montavam postos de alistamento. O povo se preparava para a guerra civil.
Os jornalistas de Última Hora apresentavam-se como voluntários à Brigada Militar. Publicada a nominata em Boletim da Corporação — em separado e com destaque — éramos informados de que receberíamos “ordens superiores” a qualquer momento.

A adesão do III Exército

A manhã do dia 28 começou com os generais do III Exército reunidos no QG da Rua dos Andradas. A tensão no Piratini aumentava e Brizola fazia um pronunciamento patético à Nação, através da Cadeia da Legalidade:
– Povo de Porto Alegre, meus amigos do Rio Grande do Sul. Não desejo sacrificar ninguém, mas venham para a frente deste Palácio. Venham e se eles quiserem cometer uma chacina, retirem-se, mas eu não me retirarei e aqui ficarei até o fim. Poderei ser esmagado. Poderei ser destruído. Poderei ser morto. Não importa. Ficará o meu protesto lavando a honra desta Nação. A morte é melhor do que a vida sem honra. Podem atirar, que decolem os jatos. Joguem estas armas contra o povo.
E arrematava:
– Um abraço meu povo querido. Se não puder falar mais será porque não me foi possível. Adeus, meu Rio Grande querido. Pode ser, realmente, o nosso adeus. Mas aqui estaremos para cumprir o nosso dever.
Brizola ainda não encerrara o pronunciamento e eu saía da redação com alguns companheiros e nos dirigíamos ao Piratini. Da rua Sete de Setembro, sede de Última Hora, à Praça da Matriz, assistimos cenas inenarráveis. Dezenas de pessoas chorando nas ruas. Mulheres do povo com os filhos ao colo, jovens e velhos subiam às pressas a rua da Ladeira dispostos a resistir e morrer com o Governador do Rio Grande.
Embora credenciados, não conseguimos entrar no Palácio. Todas as portas de acesso estavam fechadas e guarnecidas por elementos da Brigada Militar fortemente armados. Alguém da multidão deu o grito que poderia ter determinado uma tragédia: “Ali estão os golpistas”.
O general Machado Lopes, comandante do III Exército, à frente de um grupo de oficiais, se aproximava do Palácio lentamente. A massa começou a deslocar-se na direção dos militares.
Foram segundos da mais alta dramaticidade.
O Hino Nacional, brotado da garganta de milhares de pessoas, petrificou os oficiais. Eles pararam e cantaram como povo. Machado Lopes estava emocionado e trêmulo.
O III Exército estava aderindo à Legalidade.

A revolta dos sargentos

Na manhã de 29 chamaram-me ao telefone no “Porão da Legalidade”, no Palácio Piratini. Era da Última Hora com instruções para deslocar-me à Base Aérea de Canoas, onde estariam ocorrendo fatos da maior gravidade. Ali chegando, colhi informações de que um grupo de sargentos havia impedido que oficiais cumprissem as determinações de bombardear Porto Alegre, silenciando Brizola no Piratini. As bombas tinham sido desativadas e os oficiais presos. Ainda pela manhã, tropas do Exército ocuparam a Base. Destituído do comando, o brigadeiro Aureliano Passos seguia para o Rio de Janeiro acompanhado de outros oficiais. O comando passava às mãos do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro e a Legalidade vencia uma de suas etapas mais importantes.
Sabe-se hoje que a ordem de bombardeio partira do general Orlando Geisel, em mensagem ao comandante do III Exército. “O III Exército deve compelir imediatamente o sr. Leonel Brizola a pôr termo à ação subversiva que vem desenvolvendo” e “empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário” — enfatizava o general Geisel.
O deputado Ranieri Mazzili, presidente da Câmara Federal no exercício da Presidência da República, assinava, dia 20, decreto exonerando do comando do III Exército o general Machado Lopes e nomeando, para substituí-Io, o general Osvaldo Cordeiro de Farias. Machado Lopes reagiu: “O III Exército, unido e coeso sob meu comando, não recebe mais ordens do marechal Odílio Denys”. Informava ao Ministro da Guerra que “se o general Cordeiro desembarcar em Porto Alegre, será preso” .
Foi uma longa noite de expectativa no Aeroporto Salgado Filho. Cordeiro de Farias não apareceu e nós, jornalistas, retornamos às redações decepcionados. Ansiávamos pela prisão do general, ex-interventor no Rio Grande e golpista notório.
A população da capital gaúcha vivia momentos de angústia e dificuldades. Bancos fechados, comércio paralisado, falta absoluta de dinheiro e o temor de um bombardeio à cidade ainda persistia.
A Cadeia da Legalidade prosseguia com mensagens de Brizola, palavras de ordem e fortes apelos à mobilização popular.
Ao anúncio de que a Marinha deslocaria uma Força-Tarefa para o Estado, Brizola ordenara que fossem desligadas as sinaleiras da Barra de Rio Grande e dava a entender que algumas barcaças tinham sido afundadas para impossibilitar a passagem dos navios.

Jango em Montevidéu

O dia 30 terminou agitado. No Palácio, os jornalistas eram informados de que o vice-presidente João Goulart chegaria a Montevidéu a qualquer momento. Última Hora credenciara a mim e ao fotógrafo Assis Hoffmann para que viajássemos à capital uruguaia e cobríssemos o retorno de Goulart.
À tarde de 31 mais de oitenta jornalistas desembarcavam no aeroporto de Montevidéu de dois C-46 fretados pelo governador Leonel Brizola. Goulart saía de Buenos Aires no final da tarde em um DC-3 da Transcontinental e, menos de uma hora depois, desembarcava em Carrasco, sendo recebido pelo ministro das Relações Exteriores do Uruguai, Martins Monteiro, e o embaixador brasileiro, Valder Sarmanho.
Os jornalistas armaram tanta confusão à chegada do vice-presidente que Goulart recusou-se, num primeiro momento, a conceder entrevistas. Serenados os ânimos, falou e enalteceu o general Machado Lopes, criticou os militares que pretendiam impedí-lo de exercer a Presidência da República. Elogiou o povo gaúcho “pela bravura” e o Congresso Nacional “pela resistência democrática”. Lamentou as tropelias do governador Carlos Lacerda, da Guanabara, que estabelecera a censura aos meios de comunicação e determinara a prisão de intelectuais, líderes sindicais e estudantes.
Goulart seguia para a Embaixada do Brasil, no Boulevard Artigas, e os funcionários ali credenciados informavam que não haveria entrevistas. Assis Hoffmann e eu forçamos o ingresso na Embaixada e tivemos sucesso. Pertencíamos ao “Governo Brizola” … Próximos de Jango já estavam dois outros jornalistas brasileiros: Ubiratan Lemos, da revista O Cruzeiro, e Lucídio Castello Branco, da Folha da Tarde e Correio do Povo, de Porto Alegre.
Procurei Goulart e fui incisivo:
– Presidente, sou da Última Hora e tenho ordens do Samuel Weiner de só retornar ao Brasil na companhia de V. Excia.
Jango encarou-me com aquele ar bonachão que o caracterizava e respondeu:
– Transmita o meu abraço ao Samuel e diga-lhe que vocês voltarão ao Brasil comigo.
Conversamos sobre a situação vivida pela população gaúcha. Jango perguntou-me pelo “ânimo da moçada” no Piratini. Descrevi-lhe a situação, a firmeza de Brizola, falei da Cadeia da Legalidade, dos instantes dramáticos que precederam a adesão do III Exército, da reação dos sargentos da Base Aérea de Canoas.
À frente da Embaixada, repórteres e fotógrafos de várias nacionalidades enfrentavam a noite gelada à espera de notícias. Os jornalistas gaúchos haviam retornado horas antes ao Rio Grande nos aviões cedidos por Brizola, e o fotógrafo Lemyr Martins levava os filmes de Assis e as minhas anotações.

Tancredo na embaixada

Às primeiras horas da madrugada, dirigimo-nos a um bar das proximidades. Fomos então procurados por um policial gaúcho, da segurança de Goulart, que nos alertou para o fato de que “tem muita gente no Aeroporto, aguardando um emissário de Brasília”.
Passamos o resto da noite em Carrasco.
O emissário a que aludia o nosso amigo, desembarcava do Viscont presidencial às 10 horas da manhã de 1º de setembro. Era ele o ex-ministro da Justiça de Vargas, Tancredo Neves. Acompanhava-o o deputado Hugo de Faria.
Tancredo, Hugo de Faria, o senador Barros de Carvalho. o professor Ajadil de Lemos (representante de Brizola) e uns poucos mais reuniam-se com Goulart no pavimento superior da Embaixada. Entre um pavimento e outro havia um telefone. E dali Jango passou a comunicar-se com Brizola, dando conta dos entendimentos. No primeiro contato garantiu que “nada decidirei sem consultar vocês do Rio Grande”. Novo telefonema, quase aos gritos (as comunicações eram precárias):
– Calma, não precipita as coisas. PTB e PSD formam maioria no Congresso. Sigo hoje à noite, amanhã conversaremos.
Goulart despistava. Dava a entender que viajaria de automóvel. A FAB armara a “Operação Mosquito”, com a qual — dizia-se — derrubaria o avião que ousasse sobrevoar o espaço aéreo brasileiro com o Vice-Presidente a bordo.
15 horas, reunião encerrada, desciam todos para o almoço.
As informações começavam a circular no interior da Embaixada. Uma delas assegurava que Jango aceitara a fórmula parlamentarista e convidara Tancredo Neves para primeiro-ministro. Brizola resistia à idéia, o que preocupava Goulart. Daí o pedido de “calma, não precipita as coisas …”
Outra informação se relacionava com a tripulação do Viscount. Tancredo pretendia passar pelo Rio Grande para conversar com Brizola. A tripulação se recusara a pousar em Porto Alegre, temendo que os revolucionários do Governador retivessem o avião presidencial.
À saída do almoço, abordei Tancredo Neves e pedi-lhe que falasse à imprensa. Disse-lhe que os jornalistas permaneciam em vigília desde a noite anterior. Solícito, Tancredo acompanhou-me até a porta da Embaixada. Dizendo que viera “em missão de paz”, fez o elogio dos gaúchos “e de seu ilustre governador”.
– O Rio Grande salvou o Brasil da guerra dvil.
Assegurou que “as negociações em torno do parlamentarismo tiveram um avanço substancial”.
– Será o fim da crise, uma solução honrosa.
Tancredo retornava a Brasília e deixava uma certeza: o Vice-Presidente concordava com o parlamentarismo.

No Palácio Piratini

No fim da tarde João Goulart deixava os seus aposentos. Aparência tranqüila, bateu-me às costas e ordenou:
– Te prepara, vamos para o Rio Grande.
Falando aos jornalistas, destacou que pretendia superar a crise através de uma negociação ampla. Referindo-se à emenda parlamentarista, tangenciou:
– Não posso discutí-la em profundidade, faltam-me elementos.
Outras afirmações:
– Irei até o impossível para evitar a guerra civil.
– Formarei um governo de coalizão, com a participação de todas as correntes partidárias.
– Soube da renúncia do presidente Jânio Quadros em Cingapura. Minha reação foi de perplexidade.
Deixamos Montevidéu ao anoitecer. No avião, Jango sentou ao lado do senador Barros de Carvalho. Examinou as manchetes dos jornais e conversou descontraidamente por alguns instantes. Acomodou-se na poltrona e repousou.
O Caravelle da Varig teve todas as luzes apagadas e a ordem rigorosa para que ninguém fumasse. Vôo cego — como se dizia à época — até a capital gaúcha. A “Operação Mosquito” era uma ameça concreta e teríamos que superá-Ia a qualquer preço.
Simplesmente indescritível o entusiasmo popular com a chegada de Goulart a Porto Alegre. Do aeroporto Salgado Filho ao Palácio Piratini, uma multidão incalculável saudava o futuro Presidente da República e gritava o nome do governador Leonel Brizola.
No Palácio, uma reunião com lideranças políticas, militares, sindicalistas e jornalistas (éramos bem mais que jornalistas, estávamos integrados a um processo que seria esmagado três anos depois).
Na praça da Matriz o povo, num côro estonteante, pedia a presença de Goulart nas sacadas do Palácio Piratini.
Jango decidiu seguir para Brasília dia 5. Flávio Tavares, escalado pela Última Hora para a cobertura da viagem e das solenidades da posse (dia 7) atrasou-se e, no Aeroporto, recebi instruções para substituí-lo. À porta do avião avistei Flávio que corria desesperadamente pela pista do Salgado Filho. Chegara a tempo de acompanhar o Vice-Presidente.
Passado algum tempo, estava eu outra vez ao lado de Flávio. Juntos, assistimos, em Brasília, os momentos que marcaram o Governo Goulart. O plebiscito, a revolução dos sargentos, a luta pelas reformas de base, o 1º de abril de 64. A sessão do Congresso em que o senador Auro Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República. As primeiras cassações. A volta de Ranieri Mazzili ao triste papel de menino-de-recados de uma Junta Militar.
A tentativa de resistência ao golpe, romântica e frustada.
Flávio era preso e eu buscava segurança nos brejões de Goiás.
Descia a noite, uma noite sem precedentes na história política do País. Noite de estrelas sem brilho, a noite dos generais.
* Na época, Adaucto Vasconcellos era repórter político da Última Hora. Trabalhou em jornais de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
O texto foi publicado no livro Legalidade – 25 anos, a Resistência Popular que Levou Jango ao Poder, da Editora Redactor

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